Capturar, esterilizar e devolver. Esses três atos e palavras formam a sigla CED, que consiste em uma forma para manejo populacional felino, iniciada com felinos ferais (não domésticos), que não poderiam ser encaminhados para o programa CEA (capturar, esterilizar, adotar). O deputado federal Marx Beltrão (PSD) criou um Projeto de Lei (PL) e apresentou na Câmara dos Deputados. Objetivo é, por meio do PL 1993/21, alcançar uma importante alteração na Lei 13426/17, atualizando e estabelecendo que o método CED possa ser utilizado para o controle populacional de cães e gatos domésticos de vida livre no Brasil.
Atualmente, em ambientes urbanos, gatos semi-ferais e abandonados também são submetidos à técnica, buscando controle de zoonoses, diminuição de reprodução, maximização de bem-estar animal e na conservação ambiental (felinos são predadores potenciais de várias espécies da fauna).
Para o médico-veterinário, especialista em cirurgia e anestesiologia veterinária, Pierre Barnabé Escodro, o método não representa notoriedade apenas para Saúde Pública, considerando o controle e prevenção de zoonoses, mas, também, na Saúde Única, pois age na tríade saúde humana, saúde animal e conservação ambiental.
Sendo assim, Escodro acredita que, caso o PL seja aprovado, ele significará um relevante avanço para realidade nacional de proteção animal e Saúde Pública, porém considerando apenas os felinos, já que, em sua opinião, as políticas para cães devem ser reestruturadas de forma diferente. “O método já é autorizado e amparado por leis em vários países. No Brasil, ainda temos muitas resistências quanto ao CED, pois protetores ainda apresentam como ideia fixa a construção de abrigos, que, normalmente, dentro das realidades dos órgãos públicos (CCZ, UVZ, gatis públicos) e do terceiro setor, se tornam verdadeiros centros de acumulação animal, indo contra as questões sanitárias e de bem-estar animal. No entanto, é bom ratificar que o programa de CED deve estar associado a um bom programa de educação ambiental, combate ao abandono e construção de políticas públicas”, salienta.
Além disso, o método CED, na opinião do veterinário, não inviabiliza programas de adoção, que podem e devem ser feitos para filhotes e animais mais dóceis, com apoio etológico e de identificação dos animais aptos, respeitando a janela de idade para desenvolvimento cognitivo e socialização de cada espécie (duas a oito semanas em gatos e três a 12 semanas em cães). “Nesses casos, lares de passagem e treinamento de voluntários podem ser muito mais efetivos que abrigos, considerando os 4 R’s, que envolve resgate seletivo, reabilitação, ressocialização e reintrodução à sociedade”, adiciona.
Enquanto veterinário, a maior expectativa de Escodro em relação a esse PL é que as quatro frentes abracem a ideia com mais força, unindo os órgãos públicos (UVZ, CCZ e Vigilância Sanitária de municípios menores) à sociedade civil (ONGs e protetores individuais), empresas que interessem no apoio às comunidades e universidades (como promotores de expertise e ações de implantação). “Nosso grupo de Extensão e Pesquisa na UFAL já faz convênios de educação, treinamento e implantação de programas de controle populacional (CED principalmente), além de ações concomitantes de educação ambiental, trabalhando tanto para empresas, órgãos públicos e sociedade civil”, compartilha.
Quem pode realizar o CED?
A médica-veterinária, especialista em clínica e cirurgia de caninos e felinos domésticos, Evelynne Hildegard Marques de Melo, lembra que o método CED pode ser realizado por equipe multidisciplinar envolvendo pessoas e profissionais que, previamente, se especializem/compreendam o método.
Essa equipe precisa, de acordo com Evelynne, dominar algumas etapas:
- Meios de observação e contagem dos animais em colônias (identificação dos espécimes);
- Meios de captura dos gatos com gaiolas adequadas, compreender as técnicas necessárias para o manejo dos animais capturados (evitando estresse);
- Dominar técnica cirúrgica minimamente invasiva (pois os animais serão devolvidos rapidamente ao seu local de origem, normalmente em 24h após a cirurgia de castração, e não podem correr risco de rupturas de suturas em laparotomia amplas);
- Compreender a terapêutica necessária isenta de internação pós-operatório;
- Entender a importância do corte cirúrgico da ponta da orelha dos gatos, como forma de marcação para evitar repetir captura;
- Compreender meios de devolução dos animais sem estresse.
Sobre como recebeu a notícia do Projeto de Lei para institucionalizar o método CED, Evelynne afirma ter com muito orgulho, sobretudo pelo seu significado de atualização que o Brasil passa a demonstrar no quesito, popularmente conhecido como “causa animal”, e que, tecnicamente, é causa de Saúde Única.
“De modo muito democrático, caminhamos próximos, pesquisas e legislativos. Sempre mantenho a naturalidade da sinalização ao legislativo quanto às observações feitas em pesquisas que apontam necessidade de política pública. E, neste sentido, me mantive em interação técnica com o autor do PL 1993/21 que é um parlamentar federal do Estado de Alagoas e que tem sido um dos principais condutores das pautas de interesse com animais no Brasil, o qual também está como presidente da Frente Parlamentar Federal de Proteção Animal na Câmara dos Deputados e que estudou o tema em conjunto e deu o pontapé para o reconhecimento legislativo do método CED pelo parlamento federal brasileiro”, conta a veterinária que acredita que o Brasil possui bons exemplos da eficiência do método CED.
Próximas etapas do PL
Como explicado por Evelynne, após protocolado um Projeto de Lei na Câmara, o mesmo passa ao estado de tramitação entre as Comissões, onde vai recebendo pareceres e segue até o momento de sansão presidencial. “Esse trâmite é público e todo cidadão pode acompanhar. É uma trajetória longa, normalmente, mas é o primeiro passo para qualquer mudança de realidade no País para assuntos que dependem de política pública. Temos, com o protocolo do PL, já muitas razões para comemorar”, salienta.
A profissional ainda lembra que as gestões políticas são rotativas e o papel do legislador é ter iniciativas úteis durante seu mandato, sendo esta uma contribuição importante. “Embora o método CED seja antigo no âmbito internacional e já aplicado no Brasil por alguns veterinários, adaptando de diretrizes internacionais, ainda não havia tido o direcionamento ao Legislativo federal e isso significa ineditismo, inovação e visão política atualizada”, argumenta.
Na opinião de Evelynne, há urgência em fazer o reconhecimento legal deste método para acompanhar a transição legislativa punitiva que o Brasil vive. “O CED envolve atividades que podem ser interpretadas como ‘abuso ou mal estar animal’, caso das variadas interpretações que são lançadas quanto ao método de captura, corte da orelha, devolução sem pós-operatório convencional. Por esta razão, acredito que, mesmo antes de ser sancionada, esta iniciativa legislativa ajudará, inclusive, a nossa entidade de classe CFMV a Normatizar o método, que, atualmente, não há”, pondera.
Caso isso ocorra, a profissional acredita que será possível uma condução padronizada que evitará erros de manejo nos programas de castração com esse método pelos veterinários no Brasil. É preciso uma Resolução Normativa que defina as metodologias, uma vez que, atualmente, nos guiamos por métodos internacionais”, complementa.
Pontos a serem levados em consideração
O gestor ambiental, especialista em tratamento ecologicamente correto de ambientes com presença de gatos domésticos de vida livre, Eduardo Pedroso, declara que adoraria ver o método ser acolhido por uma casa legislativa e ter respaldo legal. “Seria muito bom. Mas, é preciso que o método seja reconhecido e realizado da maneira correta”, avalia.
Pedroso afirma que um dos erros presentes no PL é misturar cães com gatos. “São espécies diferentes, com fisiologias diferentes e que requerem manejos diferentes. Quem disse que se marca orelha de cão? Cachorro não forma colônia. Cães bravos errantes não são tratados como gatos asselvajados. Misturar cão e gato em um mesmo projeto de controle com um método é o mesmo que fazer um regulamento esportivo para um campeonato em que equipes de basquete vão enfrentar equipes de futebol. Tudo é esporte, mas são modalidades diferentes. Esse PL é um equívoco”, analisa.
Ele destaca que cães e gatos apresentam muitos problemas semelhantes que preocupam a Saúde Pública, mas o tratamento para ambos não é o mesmo. Infelizmente, parte da nossa classe política que se mete com proteção animal e meio ambiente é muito despreparada e acaba prejudicando quem faz trabalho ambiental sério no Brasil. Por isso, cada linha de um PL direcionado a esse fim deve ser muito bem analisada”, sugere.
Por outro lado, a veterinária Evelynne reforça que a Proposta Federal PL n° 1993/21, já em tramitação, vem como forma de colaborar atualizando uma Lei já existente, a saber: a Lei Federal nº 13.426, de 30 de março de 2017, que já trata das duas espécies “caninos e felinos domésticos”, e, neste sentido, segue contemplando o método CED para as duas espécies objetos da referida Lei.
“Naturalmente,os gatos que serão muito mais abrangidos nesta Proposta de Lei serão aqueles formadores de colônias, em locais onde estão se desenvolvendo distantes do convívio humano e mantendo características denominadas de “selvagens/ferais” e os cães que, naturalmente, serão mais abrangidos serão aqueles que, em situação de vida livre, estão identificados como animais comunitários e que deverão ser, após castrados, devolvidos ao ambiente de origem”, explica a profissional mencionando, ainda, que há gatos em situação de vida livre “comunitários” e que também podem necessitar serem devolvidos ao ambiente de origem.
Em sua observação, o Texto do PL abrange bem as duas espécies caninos e felinos, mencionando as formas possíveis de serem encontrados na situação de vida livre, e que podem ser observadas no Art 2°, § 1º, onde lá está dito: “Para os fins desta Lei, caninos e felinos domésticos de vida livre são aqueles não domiciliados que se encontram em situação de colônias, selvagens, comunitários e distantes do contato social humano, sem controle profilático zoo-sanitário e em ativa reprodução de descendentes”.
“O Parlamentar Marx Beltrão está de parabéns pela iniciativa útil, atualizada e necessária. A Proposta Legislativa Federal PL n° 1993/21 nos apresenta um texto enxuto e um conteúdo muito alinhado à justificativa do que se propõe, que são 3 (três) aspectos: o objetivo de 1- reconhecer legalmente o método CED, 2- esclarecer o que é o método e a quais espécies e situação se destina e 3- afastar contradições legais (frente à nova Lei sansão) relativos a alguns aspectos [no método CED] ainda vistos com estranheza por populares e alguns parlamentares, que são: a imediata devolução do animal após a cirurgia e o corte da ponta da orelha dos gatos como algo legal, afastando o enquadramento em maus-tratos ou abuso, reconhecendo que o corte da ponta da orelha é algo necessário para evitar captura repetidas destes felinos”, analisa.
Neste sentido, em sua visão, o texto do PL está bem claro, quanto à especificidade do corte de orelha para felinos, onde lá está dito no Art.2° § 3º: “Admite-se a técnica de corte de ponta de orelha para a identificação visual à distância dos felinos domésticos ferais esterilizados”.
“Todas as metodologias, em sua riqueza de detalhes entre espécies, deve estar a cargo da Normativas, Resoluções Técnicas definidas ou guias técnicos que podem ser descrito as diretrizes, tal como temos, por exemplo, para os programas de castração de cães e gatos convencionais no Brasil, a RESOLUÇÃO Nº 962, DE 27 DE AGOSTO DE 2010 do CFMV, que ‘Normatiza os Procedimentos de Contracepção de Cães e Gatos em Programas de Educação em Saúde, Guarda Responsável e Esterilização Cirúrgica com a Finalidade de Controle Populacional’”, exemplifica.
Também é importante lembrar, segundo Evelynne, que o parlamento, desde o federal aos municipais, está a serviço do povo por meio dos parlamentares a quem devemos e podemos direcionar sugestões e observações construtivas enquanto durarem os mandatos, fazendo, assim, o exercício da democracia. “Eu, como pesquisadora da temática políticas públicas, também vejo com muita naturalidade este direcionamento e o País tem uma riqueza de conhecimento técnico muito grande e muito útil aos parlamentos”, aponta.
A veterinária também considera oportuno lembrar que uma proposta legislativa, antes de ser sancionada, recebe modificações. “Temos um exemplo disso recente no País, que é a Lei Sansão, antes, abrangendo os animais domésticos, o texto final foi aprovado fazendo referência somente aos cães e gatos. Outro exemplo no País, sobre o aspecto do trâmite, que pode ser demorado, é a Lei federal de castração de cães e gatos: em 2006, a Câmara recebia a primeira proposta legislativa, mas somente em 2017 é que o Brasil teve a Lei sancionada e com mudanças no texto, com vetos importantes. Assim, é importante valorizar a iniciativa parlamentar, porque esse é o primeiro passo para políticas públicas e devemos seguir somando no decorrer do caminho”, finaliza.
Fonte: Revista Cães & Gatos